Esses espetáculos exigem uma postura do público diferenciada do lugar cativo e cômodo na plateia. Em Le Magnifique Nouvelle de la Passion, os espectadores entravam na sala vazia e se espalhavam pelos cantos para assistir à ação sem lugar determinado. A certa altura, eram impelidos a reagir a repolhos atirados contra eles ou a um ator que rolava em sua direção, enquanto o discurso político trazido à tona tanto pelo texto quanto nos corpos dos atores revelava um mundo de hibridismo, possibilidades além da limitação dual de gêneros e papéis sexuais.
Um primeiro passo para se aproximar do trabalho feito pelo coletivo é entender o que eles pretendem com sua arte. Ricardo diz: "A gente tenta apresentar situações abertas onde as pessoas optem intelectualmente ou intuitivamente por se posicionar. O público que consegue se manifestar na cena é o público que pode transformar a sociedade.” E Léo complementa: “Queremos que as pessoas saiam mudadas, sem tanto preconceito. Que tenham noção das coisas que estão acontecendo no mundo sem demagogia. É um teatro extremamente político.
Gigantes
O coletivo Heliogábalus existe há quatro anos. É um grupo "gigante" de artistas ligados à perfomance, literatura e artes visuais. Além Ricardo Nolasco e Léo Glück, envolve Clarissa Oliveira, Semyramys, Monastier, Guilherme Marks, Rafaelin Poli, Mariana Zimmermann Vanessa Benke, Danyele Cristine. E mais os colaboradores: Stäel Fraga, os músicos Camilla de Lucca e Guilherme Akio.
Foi pelo desejo de adaptar Alice no País das Maravilhas que esse pessoal se juntou, interessados nos jogos de palavras e nos questionamentos da lógica exercitados por Lewis Carroll. Ricardo cursava a FAP, e fez a primeira versão de Scarroll em 2006.
Léo e Ricardo mencionam influências fortes de Artaud, do Butô e da performance. Mas "as grandes referências do grupo estão ligadas a tentativas de revolução", diz ele. "A gente busca uma revolução que seja microcósmica.” Por essa linha de pensamento, qualquer pessoa que seja atingida e modificada, basta.
A revolução de que falam é metafórica e, quando se efetiva (o que nem sempre acontece), ritualística. “Às vezes, passa um espetáculo inteiro e não acontece esse ritual, porque para isso o performer e o público precisam entrar em sintonia dividindo o mesmo espaço. Às vezes, o performer não chega ao estágio necessário ou o público barra”, diz Ricardo, citando uma apresentação de Le Magnifique Nouvelle de La Passion em que a sintonia não foi alcançada.
O embate entre público e performers, segundo o diretor, teria funcionado bem em uma apresentação na Sala Londrina, em cima do palco cheio, em pé. Teriam chegado mais perto da dimensão política de atuação do espectador que tanto perseguem, esperando, se for o caso, que aquele atingido por um repolho o devolva na cara do ator. “Queremos tirar a passividade clássica do teatro", diz Ricardo. No mínimo, querem que quem vê cogite entre reagir ou não.
Xamã
O xamanismo, que Ricardo pratica há tempos, entra como catalizador de energia. Religião pagã antiga, ligava a vida das pessoas a fenômenos naturais. O grupo foca em como esses ritos vão se transformando no contexto atual e formula uma recriação das mitologias, apontando para onde a lógica ocidental teria caminhado a partir delas: a body art, a bomba atômica modificando corpos, o hibridismo, a transexualidade e as cirurgia plástica em contraponto aos antigos mitos transformadores, como o de Narciso.
Estão interessados, enfim, nos ”corpos que não são só corpos humanos". “Não cabe mais ser só humano", diz Léo, e exemplifica: "A transexualidade não é considerada humana, é marginalizada.” Grosso modo, ela resume o projeto da Heliogábalus em um trajeto: "o humano caminhando desde a besta até a máquina”, ao que Ricardo opõe: "e o contrário também”.
Outra linha importante de trabalho do grupo é o grotesco, nascido dos ritos dionísicos "como metáfora do ventre, local de modificação, bizarro, estranho, terreno de bruxaria, tudo o que foi banido", define Ricardo.
Carreira
Em O Último Canto do Bode - Tomo 1, flagram a imagem feminina e andrógina; a besta e a máquina; e o humano no meio tendo de lidar com essas informações.
Scarroll era ritualístico. Na Casa Vermelha, as cenas aconteciam em todas as salas, como um festejo, e o texto se distorcia mecanicamente. “À plateia era dado o direito de escolha, ir e vir, como se portar, sentar ou ficar em pé, sair... A interação tem que partir dela”, diz Ricardo.
Le Magnifique Nouvelle de La Passion, por sua vez, tratava do ímpeto de amor, não só o heterossexual, normativo, mas a paixão independente do seu objeto: “homem, mulher, ET, cachorro".
O despudoramento e a eventual agressividade na defesa de seu ponto de vista sobre o mundo, repensando a partir dessas ideias o modo de fazer teatro, por vezes cria obstáculos para a aproximação do público. Mas Ricardo conta que o Heliogabalus "tem experiências muito boas" com "hippies, moradores de rua, vileiros". "Eles não têm preconceito, ficam embasbacados", comenta Léo. "A classe teatral, quando vai assistir, tem todo um cabedal desfavorável para a fruição da obra”, diz ela. Ricardo acrescenta: “Às vezes, o público também”.
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